terça-feira, 7 de julho de 2009

CORES NO ESCURO: AUDIODESCREVENDO CARNE TRÊMULA

Bruna Alves LEÃO
Universidade Estadual do Ceará
Vera Lúcia Santiago ARAÚJO
Universidade Estadual do Ceará


RESUMO:

.......... A Audiodescrição (doravante AD) pode ser definida como a técnica utilizada para tornar o teatro, o cinema e a TV acessíveis para os cegos. Trata-se de uma narração adicional que descreve a ação, a linguagem corporal, as expressões faciais, os cenários e os figurinos. A tradução é colocada entre os diálogos e não interfere nos efeitos musicais e sonoros. Seria a tradução das imagens, do enredo, do cenário e da ação. Na época do Projeto Especial, ficamos imaginando como poderia ser
traduzido o universo de cores produzido por um cineasta singular como Pedro Almodóvar. Na nossa visão, essas cores sempre têm uma simbologia muito forte. (Benecke, 2004; Kosloff, 1998). Como não tínhamos tempo para descrever todas as ações, os figurinos e os cenários, sempre demos ênfase a essa questão na hora de escolher o que traduzir. Alguns estudiosos citam como a principal diretriz de uma AD que não haja uma leitura pessoal do filme para que o cego o faça, foi necessário que tivéssemos muito cuidado com a nossa narração. O trecho escolhido foi o inicial.
.......... Depois disso, esse trecho foi capturado (ripado) do DVD. Em seguida, foi confeccionado o roteiro com a definição dos espaços de locução. A gravação da AD foi feita no Windows Movie Maker com dois audiodescritores diferentes. O resultado final será discutido neste trabalho.


INTRODUÇÃO


.......... A AD originou-se nos Estados Unidos nos anos 70. Já é bastante utilizada nos Estados Unidos, Reino Unido, França, Alemanha e Japão. Em alguns desses países já existe até uma regulamentação que obriga as emissoras de TV a audiodescreverem seus programas e filmes: EUA (50 horas por mês); Reino Unido (atualmente 4% da programação, em 2010, 10%). Embora ainda não seja uma realidade em nosso país, sua aplicação está prevista e regulamentada pela portaria número 310 de 27/07 de 2006 (Diário Oficial da União de 28/07/2006). Essa portaria complementa o decreto nº 5296 de 2/12/2004 que trata da acessibilidade. Eis o que diz a lei sobre a AD: ”A programação veiculada pelas estações transmissoras ou retransmissoras dos serviços de radiodifusão de sons e imagens deverá conter: a) [...]; b) Audiodescrição, em língua portuguesa, devendo ser transmitida através do Programa Secundário de Áudio (SAP), sempre que o programa for exclusivamente falado em português; c) dublagem em língua portuguesa, dos programas veiculados em língua estrangeira, no todo ou em parte, devendo ser transmitida através do Programa Secundário de Áudio (SAP) juntamente com a audiodescrição definida na alínea b, de modo a permitir a compreensão dos diálogos e conteúdos audiovisuais
por pessoas com deficiência visual e pessoas que não consigam ou não tenham fluência para leitura das legendas de tradução”.
.......... Apesar da existência da lei, o nosso país ainda enfrenta grandes dificuldades em colocá-la em prática, tendo em vista que é necessário preparar profissionais e descobrir um modelo padrão de AD que atenda as necessidades dos cegos brasileiros.
.......... Diferentemente da Europa e dos Estados Unidos onde a AD já é bastante difundida e valorizada, aqui no Brasil as pesquisas são realizadas apenas em alguns estados.
.......... Um dos grupos que deu início a esses estudos no nosso país foi formado na Universidade Federal da Bahia (UFBa) coordenado pela Profa. Dra. Eliana Paes Cardoso Franco (2007). A professora realizou uma pesquisa de recepção com cegos baianos, utilizando para isso um curta metragem de um cineasta da Bahia, Adler Kibe Paz, intitulado “Pênalti”. Dois grupos de cegos viram diferentes versões do filme, com e sem AD. O grupo com AD teve um desempenho bastante superior ao outro, sugerindo que os cegos necessitam realmente de tradução para poderem assistir a qualquer produção audiovisual.
.......... As pesquisas aqui no Ceará foram iniciadas em 2005 com uma atividade do curso de Letras da Universidade Estadual do Ceará (UECE) chamada de Projeto Especial (PE) intitulado “Tradução para cegos e surdos”, o qual foi orientado pela Profa. Dra. Vera Lúcia Santiago e que tinha como proposta produzir pequenos vídeos legendados e audiodescritos pelos próprios alunos. No nosso caso escolhemos a cena inicial do filme “Carne Trêmula” do cineasta Pedro Almodóvar para audiodescrever, procurando enfatizar a questão da simbologia das cores proposta pelo diretor. E foi a partir dessa disciplina que surgiu o interesse pela questão da acessibilidade e de um aprofundamento nos estudos da audiodescrição por parte deste grupo.
.......... Segundo Casado (2007), tudo o que será ou não audiodescrito não poderá ser considerado arbitrário, pois deve ser pautado por uma análise rigorosa de prioridades levando em consideração o princípio da relevância, ou seja, dar ênfase ao que há de maior destaque no filme. Para isso ela enumerou alguns elementos que são de total importância para uma AD. A autora os dividiu em três grandes grupos: o dos personagens, que abrange a questão do vestuário, atributos físicos, expressões faciais, linguagem corporal, etnia, idade etc.; o da ambientação, a qual é dividida em elementos espaciais (compreende os elementos que situam o personagem no espaço físico em que ele se encontra) e elementos temporais (momento, hora do dia, ano, mês, dia da semana etc.); e o das ações, que são os elementos visuais e verbais (escritos).


APORTES TEÓRICOS


.......... A invasão de novos meios tecnológicos (vídeos, computadores, CDs, DVDs, mp3, entre outros) em nossa sociedade vem alterando a cada dia as formas de transmitir a informação, bem como a maneira de pensar das pessoas e de perceber o mundo como um todo. Trata-se da “civilização da imagem” (PÉREZ, 2007). .......... Segundo Pérez (2007), mais de 94% da informação que o homem contemporâneo retém vem através da visão ou da audição e mais de 80%, especificamente, através da percepção visual. Dessa maneira são identificadas barreiras sociais que dificultam a interação do indivíduo com deficiência visual com o meio social em que vive.
.......... De acordo com Pérez (2007), os meios de comunicação são veículos de informação e difusão cultural que tem função sociológica de formar e informar os cidadãos, proporcionando-lhes ferramentas necessárias para sua participação ativa na vida pública. Ela ressalta ainda que uma obra audiovisual é muito mais que um desfrute de emoções, é uma experiência estética, intelectual e, muitas vezes, de conscientização política. Sendo por isso o cinema e a televisão uma ferramenta essencial de acessibilidade aos âmbitos relacionados com a cultura e com a
sociedade.
.......... E é por isso que a AD das obras audiovisuais é tão importante para os espectadores cegos, pois os incluirá no ambiente audiovisual do qual estão afastados pela sua deficiência. Segundo dados da pesquisa da Profa. Dra. Eliana Paes Cardoso Franco, no ano 2000 o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) contabilizou que existem no Brasil 2.4 milhões de pessoas com deficiência, dentre elas, 148 mil cegos, divididos entre 77.900 mulheres e 70.100 homens, sendo que a maioria dessas pessoas cegas concentra-se nas regiões nordeste e sudeste. Isso só nos confirma a necessidade do desenvolvimento de políticas públicas que favoreçam os trabalhos de AD em nosso país, com ênfase para as regiões citadas, principalmente se levarmos em consideração a gama de programas, novelas, filmes e telejornais produzidos e exibidos pelas grandes redes de TV do Brasil.
.......... Casado (2007) cita algumas diretrizes para a realização de uma audiodescrição: Deve ser colocado audiodescrição sempre que for possível entre os diálogos; A audiodescrição só pode se sobrepor aos diálogos que não tem muita importância e unicamente para dar informações bastante relevantes; A audiodescrição só pode se sobrepor às letras das músicas; Os títulos e os créditos devem ser audiodescritos; Durante o filme, se a música não for importante para o argumento, a AD é necessária; Não deve ser feito audiodescrição sobre os diálogos; Não deve ser feito audiodescrição sobre os efeitos sonoros, quando estes completam o sentido do filme ou da descrição; Não deve ser feito audiodescrição sobre uma música de fundo importante.
.......... Snyder (Apud CASADO, 2007) enumera quatro qualidades de um bom audiodescritor: Observação: o audiodescritor tem que aprender a ver o mundo de um novo modo, ele deve se converter em um vidente ativo, que sabe perceber todos os elementos visuais que constituem um evento; Percepção do mais relevante: o audiodescritor tem que saber eleger o mais importante, o mais crítico para a compreensão de um evento.
.......... Normalmente poucas palavras bem eleitas são suficientes para transmitir as imagens; Linguagem: o audiodescritor deve ter habilidades verbais. Sua linguagem deve ser objetiva, clara e criativa; Voz: finalmente o audiodescritor deve desenvolver o instrumento vocal a partir do treinamento de suas faculdades interpretativas orais. Em nossa pesquisa com o filme “Carne Trêmula”, preferimos abrir mão de alguns destes elementos propostos por Casado (2007) e optamos por descrever toda a simbologia e o mundo colorido de Almodóvar, pois para nós é impossível acompanhar a filmografia deste cineasta sem um conhecimento detalhado das cores e do seu cenário extravagante. Um exemplo disso é o início do nosso projeto, no qual fizemos a leitura do texto inicial que falava sobre o estado de emergência a que estavam submetidos os espanhóis, colocando as vozes dos dois audiodescritores no momento em que apareciam na tela as palavras de cor vermelha. Por essa razão, denominamos nosso projeto de “Cores no Escuro”.
.......... “Cores no Escuro” foi um trabalho realizado apenas como um método de avaliação para a disciplina Projeto Especial (PE), como já foi citado acima e, portanto, não foram realizados experimentos com os cegos. .......... Já a pesquisa de AD realizada por Franco com o curta-metragem “Pênalti” de Adler Kibe Paz, passou por várias etapas: visita às instituições que atendem cegos na Bahia, seleção dos participantes, seleção do filme, AD do filme, elaboração de questionários sobre o filme e análise dos dados. Foram selecionados 10 sujeitos, a maioria com baixa visão e apenas um deles cego congênito. O curta selecionado tinha 8 minutos de duração, “filmado em Salvador, no mais puro baianês, tema sobre futebol, uma pitada de sexo, e o mais importante, imagens extremamente significativas para a compreensão do enredo”. (FRANCO, 2007) O processo da AD foi feito em um estúdio na cidade de Salvador. O questionário foi elaborado para ser respondido pelos dois grupos, aqueles que viram o filme com e sem AD. Os resultados indicaram que o grupo com AD entendeu melhor o filme do que o grupo sem AD, visto que o nível de acertos do primeiro grupo foi de 95% contra 40% do segundo.
.......... A autora destaca que seus resultados não são conclusivos, mas que já mostram os benefícios que a AD traz para a acessibilidade audiovisual dos deficientes visuais.
.......... Chama atenção para o fato de que muitas pesquisas precisam ser realizadas antes que cheguemos a uma conclusão definitiva sobre qual modelo de AD seria ideal para os cegos brasileiros.


O MAKING OF DE “CARNE TRÊMULA”
.......... Após assistirmos a uma parte do filme “Carne Trêmula” exibido em sala de aula pela professora, decidimos em conjunto que o trecho a ser audiodescrito seria o inicial.
.......... Esse trecho começa com “El Deseo S.A. [produtora de Almodóvar] presenta” e vai até a parte em que “Dona Centro” sai da pensão com “Isabelita”, que está em trabalho de parto, em busca de um hospital. Vale ressaltar ainda que antes de começar a história propriamente dita, temos a imagem de um texto explicando sobre o estado de emergência vivido pelos espanhóis, para situar o espectador sobre a época em que se passa a história. Como traduzimos somente esse trecho, não foram sinalizados os créditos iniciais do filme.
.......... Para ripar o filme, utilizamos uma placa de captura e em seguida selecionamos o trecho que seria traduzido. Depois disso tentamos definir os espaços de locução a serem utilizados, o que nos foi um pouco complicado, tendo em vista que priorizamos colocar a narração no momento do desenrolar da cena.
.......... A etapa seguinte foi a da confecção do roteiro, onde procuramos eleger os pontos principais do cenário, figurino e trama a serem traduzidos para o espectador deficiente visual.
.......... A gravação da AD foi feita através do programa de edição de vídeo Windows Movie Maker com dois audiodescritores diferentes. Exceto na gravação da primeira parte, a qual apresentava o texto sobre o estado de emergência vivido pelos espanhóis, onde ambos repetiam no mesmo instante as palavras que apareciam na tela destacadas de vermelho. Abaixo segue o texto a que nos referimos e as palavras em destaque: “Se declara o estado de exceção em todo o território nacional.”
.......... A defesa da paz, o progresso da Espanha e os direitos dos espanhóis obrigam o governo a suspender os artigos da constituição que afetam a liberdade de expressão, a liberdade de residência, a liberdade de reunião e associação, assim como o artigo 18 segundo o qual nenhum espanhol poderá ser detido, a não ser nos casos e na forma que descrevem as leis (Madri, janeiro de 1970).
.......... Com a elaboração desse projeto pudemos identificar que nem todos os espaços entre os diálogos dos personagens precisam ser preenchidos, tendo em vista que o excesso de informação também pode dificultar a compreensão do filme ou da cena a ser exibida. No nosso caso, em uma das cenas sobrepusemos à voz de um rádio que transmitia um noticiário falando sobre o estado de emergência a que estavam submetidos os espanhóis, como isso já havia sido colocado no início da nossa narração, optamos por descrever neste momento o interior do quarto e parte da pensão de “Dona Centro”. A seguir, temos o texto audiodescrito: Interior de um quarto, ambiente bem iluminado por abajures amarelos e vermelhos, muitos objetos coloridos espalhados, em destaque uma peruca loira e um rádio sobre uma penteadeira. Uma senhora costura ouvindo o rádio.
.......... Ao ouvir um grito levanta-se irritada, veste um robe vermelho floral, caminha por um corredor escuro com quadros e uma árvore de natal ao fundo, ascende as luzes e é interceptada por uma mulher em trajes de dormir.
.......... Outra preocupação que tivemos que tomar ao elaborarmos a nossa AD, foi a questão do gênero do filme que escolhemos para audiodescrever, o qual interfere diretamente na linguagem a ser utilizada na elaboração do roteiro. No trecho de “Carne Trêmula” optamos por uma linguagem descritiva, mesmo se tratando de um drama, pois elegemos como nossa vertente principal a questão da simbologia das cores, característica marcante de Pedro Almodóvar em suas produções.
.......... O tom de voz do audiodescritor também é muito importante para que uma AD funcione, pois é através dele que a narração será entendida pelo espectador cego.
.......... Na nossa audiodescrição escolhemos um tom de voz neutro, mas com um peso de seriedade, sugerido pela trilha sonora no momento da cena.
CONSIDERAÇÕES FINAIS

.......... Esse projeto foi apenas uma tentativa incipiente de elaboração de uma AD, tendo em vista que não tínhamos nenhum conhecimento técnico a respeito da profissão do audiodescritor, sem contar que também não contávamos com material adequado para a realização da mesma.
.......... Somente com a criação do grupo de estudo “LEAD: Conduzindo acessibilidade” em março de 2008, coordenado pela Profa. Dra. Vera Lúcia Santiago da Universidade Estadual do Ceará, podemos dar continuidade aos estudos de audiodescrição e adquirir um conhecimento técnico e um aprofundamento teórico a respeito desse modelo de tradução.
.......... E hoje, através desse projeto conseguimos identificar o verdadeiro sentido da palavra acessibilidade, percebendo a real importância do desenvolvimento de um trabalho sério e de um modelo padrão de AD destinado aos cegos brasileiros, assim como já existe nos países de “primeiro mundo”.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

>CASADO A.B. La Audiodescripción: Apuntes sobre el estado de la cuestión y las perspectivas de investigación. In: FRANCO E. P. C.; ARAÚJO V. L. S.; TRADTERM, 13, 2007, p. 151-169.

>FRANCO E. P. C. Em busca de um modelo de acessibilidade audiovisual para cegos no Brasil: um projeto piloto. In: FRANCO E. P. C.; ARAÚJO V. L. S.; TRADTERM, 13, 2007, p. 171-185.

>PÉREZ M. P. La audiodescripción: traduciendo el lenguaje de las cámaras. in HURTADO C. J. TRADUCCIÓN Y ACCESSIBILIDAD: SUBTITULACIÓN PARA SORDOS Y AUDIODESCRIPCIÓN PARA CIEGOS: NUEVAS MODALIDADES DE TRADUCCIÓN AUDIOVISUAL. Amsterdã: Peter Lang, 2007, p. 82-96.

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